É quase como ter uma pequena biblioteca no jardim de casa. O morro da Babilônia, localizado junto à praia do Leme, faz sua história no passo firme de sua comunidade para superar ruas de terreno íngreme e caminho estreito, apresentando como realidade um intenso convívio comunitário, ao mesmo tempo em que presencia a morte de moradores em ações violentas protagonizadas por vendedores de drogas e policiais.
Entre as cinco mil pessoas que dividem o espaço, o acesso a serviços faz duvidar de que se tratem de cidadãos que moram colados a Copacabana e seu cobiçado calçadão. A educação é prestada em maioria pela escola municipal São Tomás de Aquino e por Organizações Não Governamentais (ONGs), mantidas por financiamentos misto público privado, as quais costumam atuar no horário inverso ao escolar. Na Tia Percila, por exemplo, os profissionais selecionados estão intimamente envolvidos com a comunidade, embora a formação pedagógica, fundamental às atividades que exercem junto a crianças de variadas idades, não corresponda às necessidades do complexo trabalho com que tem de lidar diariamente.
A instituição pública, por sua vez, convive com as carências clássicas dos ambientes educacionais sob responsabilidade do Estado. Problemas na infraestrutura, salários insuficientes para professores e funcionários e desinteresse familiar são algumas das principais questões a serem enfrentadas. O contato áspero com a direção da escola do asfalto, que preferiu não se manifestar oficialmente, revelou também boas notícias, como o envio constante de material didático advindos dos governos municipal e federal.
“A escola, com raras exceções, comprovados pelas ocupações de estudantes secundaristas, como vem ocorrendo em alguns estados, é pouco democrática e excludente. Podar, amordaçar professores, humilhá-los, desestimulá-los, cansá-los é uma forma lenta, mas gradual de garantir que temas que são necessários discutir em ambiente escolar não sejam debatidos. Mas ainda há alguns rebeldes por aí e a luta continua”, afirma a professora de história da rede pública, Milene Veiga.
Misturado a essa realidade, o projeto chamado Banca de Livros foi concebido para estimular a leitura a um público carente de alternativas para o seu desenvolvimento intelectual. Aprovada no edital Fomento, promovido pela prefeitura do Rio de Janeiro, a iniciativa está presente em acanhadas estruturas montadas em morros cariocas.
Títulos recentes são oferecidos, assim como escritores clássicos no espaço que comporta cerca de mil livros, alguns adquiridos pelo projeto – os demais são fruto de doações das mais diversas fontes. Moradores podem experimentar o texto de José Saramago e sua contestação ao modelo de fé praticado por instituições religiosas em um ambiente dominado por centros evangélicos com inibição para a prática de crenças diversas. Podem conhecer o realismo fantástico de Garcia Márquez, a brasilidade de Jorge Amado, mas, principalmente, existe a rara chance de contato com autores africanos, que escrevem sobre a África e seus povos com a apropriação dos que vivem seus relatos. Em um coletivo de maioria negra, a temática racial é praticamente silenciada, apesar do racismo que exerce a sociedade brasileira.
“Ninguém senta ao meu lado no ônibus,demoro para pegar um táxi. A população negra está dormindo. É urgente despertar as consciências que vai trazer o empoderamento da raça. Juízes, médicos, negros são exceção e isso tem um peso simbólico que retrata nosso lugar social. O discurso da miscigenação é propagado, mas muito desse processo étnico foi feito por estupros e abusos. É preciso contar a história toda”, afirma o líder comunitário André Constantine, com a propriedade de quem conduz boa parte das lutas na Babilônia.
A discriminação tem lugar na favela. Atriz e escritora, Elisa Ottoni trabalha há um ano no local. Suas observações descrevem alguns dos tabus que permeiam o espaço. “A Laís, uma menina com traços afro disse que não era negra, comparando-se a um amigo de pele mais escura. Eu falei que ela podia definir-se como quisesse e que tinha uma descendência africana, o que tomou como pejorativo. Ela, então, alugou o livro As Meninas Negras, que fala sobre identidade. Depois, ao invés de negar a sua cultura, ela conseguiu se posicionar com a ajuda da literatura “.
“Não podemos abdicar desse outro modo de viver em que os outros são importantes, e é preciso perceber que esse sentido coletivo, essa negação do mundo sem lugar, de um mundo sem história, tem de ser feita em cada um de nós. Não é só contar e receber histórias, mas vivermos uma. Assim conservamos o papel de sujeitos”, escreveu o moçambicano Mia Couto.
Debates sobre racismo e cultura são negligenciados na escola, assim como discussões relativas à identidade de gênero ou ao assédio sofrido por pessoas com orientação sexual diversas. Os ataques direcionados ao Plano Nacional de Educação por propor a abordagem dessas situações respalda a postura conservadora de instituições e profissionais, sem interesse por uma atuação mais humanista.
“Os grupos conservadores querem uma população não pensante e são as pessoas mais ignorantes que tendem a aderir a ideias fascistas. Retirar temas que geram empatia, respeito à diversidade é de interesse do projeto político em andamento no Brasil”, reafirma Milene.
Ideias simples e bem pensadas sobram nas conversas entre adultos e crianças que encontram na banca uma arena para o diálogo.”Fábio, que entrega gás no morro, me contou que alguns presos estavam produzindo uma cachaça na cadeia escondido dos agentes penitenciários. Ao invés de reprimir a fabricação, como aconteceu, ele sugeriu que poderia ser feito um alambique da cana para comercializar a bebida, dando trabalho aos encarcerados, o que geraria um efeito psicológico e social incrível. É preciso dar ouvido ao povo, a todo ele, inclusive aos tantos grupos subjugados por sua posição econômica”, narra Elisa.
A pouca atenção ao conhecimento e à vivência do morro traduz-se, com frequência, em confronto. Em tempos de ditadura derrotada, mas de golpe contra um governo eleito, a população convive com uma polícia militarizada. Recentemente, a briga entre facções e autoridades determinou que a Banca permanecesse fechada. A constante subida e descida de policiais agarrados aos seus fuzis a partir da base da Polícia Pacificadora é retrato do potencial de violência da região.
A presença policial tem mudado alguns aspectos demográficos da favela. A impressão de segurança representada pelas forças do Estado pode ser falsa, mas convence novos empreendimentos a escolherem a Babilônia como terreno para suas obras. O aumento de construções e o início de uma perversa especulação mobiliária sobem o morro e desenham o fenômeno da gentrificação, a favela da favela, na descrição popular.
“Muitas pessoas precisam sair de lá pois está caro para viver e em função disso fundam uma nova comunidade, isso acontece muito no Rio. É uma forma de esconder uma parte de um bairro pobre, higienizar, elitizar. A questão é para onde vai a população expulsa daquele local”, questiona a estudante francesa de arquitetura, Lola Paprocki, que desenvolve atualmente um projeto no complexo do Alemão junto à Associação Permanências e Destruições.
As mudanças são acompanhadas por continuidades. Moradores apontam casos de corrupção em projetos com captação de verba pública que acabam esquecidos em gavetas da própria comunidade. A situação beneficia uma ou duas famílias e prejudica todo o conjunto populacional da região.
Das histórias a mais difícil de se contar é a que está sendo vivida. Um cenário complexo faz do morro um lugar de opressão desafiado pela coragem de seus habitantes que seguem suas vidas sem medo do tamanho da subida. “A favela ainda é preconceituosa, homofóbica, racista, mas seguimos a luta para transformar”, desabafa André.