Às vezes, não consigo entender certas coisas que acontecem nesse país. Andamos na contramão da história. Possivelmente, somos o único país no mundo – dentre aqueles que possuem dimensões continentais – a ter privilegiado, ao longo dos tempos, o transporte rodoviário de passageiros e cargas em detrimento ao ferroviário.
Uma das consequências mais terríveis dessa opção é o altíssimo saldo de mortos em nossas rodovias. Nosso trânsito mata mais que muitas guerras. Em dois anos de conflito armado na Síria cerca de 70 mil pessoas haviam morrido, enquanto no Brasil cerca de 50 mil pessoas morrem por ano de acidentes de trânsito, totalizando em dois anos cerca de 100 mil mortes.
Por outro lado, não é menos triste de se ver a maneira como o governo desse país trata parte importante do seu patrimônio histórico.
Durante os anos 2009 e 2010 percorri os ramais da antiga Cia Mogiana de Estradas de Ferro. Ela foi uma das grandes responsáveis, sobretudo na primeira metade o século XX, pelo desenvolvimento de algumas das regiões mais ricas desse país. Como o nordeste paulista e o triângulo mineiro. Por onde passei, salvo raras exceções, encontrei abandono e descaso. Vi esse rico patrimônio histórico em ruínas. Mas, muito além dos prédios, que no auge da ferrovia deveriam ser de encher os olhos, como a estação de Jaguara, por exemplo – construída às margens do Rio Grande, no lado mineiro, possuía dois andares. Grande parte do material para sua construção veio da Europa. As telhas, por exemplo, vieram da França -, existe o lado humano.
Durante as minhas empreitadas, encontrei pessoas cujos olhos brilhavam ao falar da ferrovia. Como o senhor Jorge, por exemplo. Que, apesar dos seus noventas anos, tinha uma memória invejável. Quando o encontrei estava montado sobre um cavalo, apartando gado, em algum lugar perdido entre Guaranésia e Monte Santo de Minas, no sudoeste mineiro.
Há algum tempo, soube que havia morrido. Graças a Deus, o encontrei a tempo de registrar a sua história. Ele nasceu e cresceu junto à estação de Itiguaçu (MG). Até onde soube, morreu lá também. Junto das ruínas da velha estação. Mas, não é exagero dizer, que parte dele já havia morrido há muito tempo. Lá no final dos anos setenta, quando os trens deixaram de circular naquela localidade.
Outro que se foi também foi o senhor Alceu. Chegou à Vila de Jaguara (MG) pouco tempo depois que os trens pararam de circular. Como morava em uma casa ao lado da estação, tornou-se uma espécie de guardião do lugar. Protegia-a contra a ação de vândalos. Tinha muita história pra contar. Sempre abria um sorriso quando o assunto era os trens. O visitei várias vezes, mas nunca se deixou fotografar. Infelizmente, não tenho uma única fotografia dele. Morreu, se não me engano, no final de 2010, de um câncer que o matou implacavelmente.
Dedico esse ensaio à memória dos senhores Jorge e Alceu. A todos os ex-ferroviários. E também àquelas pessoas que compartilham a paixão pela ferrovia.