Por Luciana Rosa da Cidade do México
O México é um país onde, infelizmente, jovens são assassinadas e responsabilizadas por sua própria morte, como ocorreu recentemente com a jovem Lesby Berlín Osorio, encontrada estrangulada com um cabo de telefone no campus da Universidade Nacional do México. O país é um dos mais perigosos do mundo para as mulheres: cerca de 5 são assassinadas a cada dia. Por esse e outros motivos, a luta de Juana Inês pelo direito de ser livre no século XVII é até hoje revolucionária.
Em janeiro deste ano estreou no Netflix Brasil a série que conta a história desta escritora mexicana, sor Juana Inês de la Cruz. Intitulada Juana Inês tem 7 episódios e é o resultado de uma co-produção entre Canal Once e Bravo Films.
Assim como Frida Kahlo se tornou popular após a estreia do filme estrelado por Salma Hayek, talvez a série seja uma boa oportunidade para conhecer outra mexicana importantíssima. Sor Juana é considerada uma das principais figuras do Século de Ouro da literatura hispano-americana e também se converteu em um ícone do feminismo.
Existe até mesmo uma universidade na cidade do México que leva seu nome, localizada no centro da Cidade do Méxic, no prédio do antigo convento de San Jeronimo – sim, porque ela foi obrigada a converter-se em freira para poder se dedicar à literatura – lá Juana passou 27 anos de sua vida, até sua morte aos 43 anos num surto de febre tifoide.
Mas para além da grande contribuição de sor Juana à literatura, ela também foi uma das precursoras na luta pelo direito das mulheres a ter acesso à educação e formação. Por esse e outros motivos, a poetisa, dramaturga e literata é tida como um dos bastiões do feminismo em um país onde, segundo dados do Instituto Nacional de Estadística y Geografía (Inegi), cerca de 5 mulheres são assassinadas por dia.
Letícia Romero, que estudou literatura na Universidad del Claustro de Sor Juana, e que pesquisa e ensina literatura na Universidade Autônoma da Cidade do México, conversou com a gente e deu alguns detalhes interessantes sobre a vida dessa grande mulher. “É difícil não se interessar pela obra de sor Juana quando se estuda literatura no México. Com ela se encerra a brilhante etapa conhecida como Século de Ouro da literatura espanhola (Séculos XVI e XVII), mas também é ela quem inaugura e preside a genealogia das mulheres escritoras do México. Portanto, se você se interessar por escritura criativa e pelo feminismo, Juana Inês é uma referência obrigatória e fascinante”, sinaliza.
Em um de seus artigos, “Chaves da diferença sexual em uma carta de sor Juana Inês de la Cruz” publicado na revista DUODA do Centro de Estudos Feministas de Barcelona, a pesquisadora analisa a carta que Juana escreveu para despedir-se de seu mentor espiritual. Segundo Letícia, essa carta utiliza estratégias que o feminismo contemporâneo, em sua vertente de pensamento da diferenciação sexual, emprega para colocar a autoridade feminina como centro e não como um satélite de qualquer discussão.
Em seu trabalho de doutorado, Letícia investigou as escritoras mexicanas do século XIX e percebeu nelas uma grande influência do trabalho da freira novo-hispana não só como um antecedente cronológico, senão como um símbolo que lhes brindava razão de ser com sua busca por espaços para desenvolver uma escritura no âmbito público, algo pouco comum, tanto no período de Sor Juana como destas escritoras. “Viram nela uma matriarca de nossas letras”, explica Letícia.
Sor Juana é considerada um símbolo da luta pelos direitos das mulheres no México porque, segundo conta Romero, em 1691 defendeu explicitamente o direito à educação em um manifesto intitulado “Resposta a Sor Filotea de la Cruz”. Este texto estava dirigido ao Bispo de Puebla e outros integrantes do alto clero que a repreendiam por dedicar muito de seu tempo a escritura mundana, em vez de dedicar-se aos afazeres religiosos.
Este texto, além de desafiar alguém que estava hierarquicamente acima de sor Juana, poderia representar um grave risco de represálias à freira que, se considerada herege, poderia arder no fogo da Santa Inquisição, uma das principais autoridades episcopais da época. “Por isso a resposta é um dos documentos fundamentais do feminismo mexicano, porque constitui uma defesa dos direitos das mulheres ao estudo, ao conhecimento e a dar as suas vidas o destino que bem entendam, como ela o fez, com orgulho e dignidade”, explica a pesquisadora.
Pode parecer controverso que uma freira se converta em um símbolo do feminismo. No entanto, a decisão de dedicar-se à vida religiosa de sor Juana foi motivada por sua sede por conhecimento e ela sabia que a única maneira de para uma mulher entregar-se aos estudos naquela época era aderir à clausura de um convento. Por tudo isso, o caso desta mulher nascida fora da capital do vice-reinado, filha “ilegítima” (seus pais não estavam casados), com um talento tão brilhante que a levou em uma corrida sem escalas à corte novo-hispana e a converteu em uma figura reconhecida por seus contemporâneos no México, na América do Sul e até mesmo na Espanha é, até hoje, fruto de admiração e estudo. Juana Inês é um caso paradigmático, por ser inusual e ao mesmo tempo inspirador.
“Quando se pensa em sor Juana, não se pode pensar em uma freira tradicional, ela não foi isso. Ela foi uma intelectual rigorosa, uma escritora com o domínio da palavra artística e uma inteligência atenta à epistemologia, à teologia à ciência e à literatura”, conclui Letícia.
Um dos aspectos mais controversos da biografia de Juana Inês tem a ver com os rumores de romances que a freira teria mantido com outras mulheres. A simples suspeita de uma vida romântica acabou ajudando a convertê-la em um ícone entre a comunidade LGBTTTI mexicana. Existe até mesmo um grupo chamado “O Closet de Sor Juana” que a identifica como figura fundacional. Mas nem sempre foi assim: até o final da década de 1970 ninguém falava sobre a possibilidade de um vínculo amoroso entre sor Juana e as vice-rainhas com quem teve uma relação de muita proximidade. Segundo relata Letícia, o tema foi abordado publicamente pela primeira vez em “Eu, a pior de todas”, filme argentino da década de 90 dirigido por María Luisa Bemberg. O filme está baseado no livro “As Armadilhas da Fé” de Octavio Paz.
Especialista no tema, Letícia rebate dizendo que é difícil validar uma leitura lésbica da poesia amorosa de Juana Inês em função do momento histórico em que está subscrita sua obra. A poesia do Século de Ouro tinha como convenção que a voz lírica, aquela que “diz” o poema, se dirigira a um “você” poético feminino, independente de que o poema estivesse dirigido a um homem ou a uma mulher. Por isso, não é possível ser determinante sobre a sexualidade da escritora baseando-se somente nisso.
Por outro lado, o conteúdo dos quase 50 poemas que sor Juana dedicou à Condessa de Paredes, María Luisa Gonzaga Manrique de Lara, chamada de Lisi em seus versos, possui um tom particular de afeto. E também nas cartas da condessa em resposta a sor Juana, que foram publicadas recentemente, existe o relato de “felizes conversas mantidas no convento de San Jerónimo”. Vale lembrar que a obra de Juana foi publicada antes na Espanha que no México, graças à intervenção de Lisi, sua mecenas, que levou a obra para o Velho Continente. “Isso não foi apenas um ato de generosidade, senão um reconhecimento da genialidade de sua querida amiga”, completa Romero.
Para a pesquisadora, através dos poemas de uma e das cartas da outra é possível aferir que existiu um vínculo intelectual e emocional intenso. “Um vínculo apaixonado, mas platônico, pensando no fato de que seus encontros aconteciam apenas no âmbito do convento somado ao fato de que ambas eram figuras públicas e que dificilmente se admitiria uma interação que fosse além das palavras. Mas sabemos, também, que com palavras é possível acariciar alguém”, encerra a estudiosa.