Na América Latina, as mulheres enfrentam uma difícil batalha para obter os mais básicos direitos humanos. Essa luta é ainda mais complexa para mulheres indígenas, que personificam a faca de dois gumes de muitos conflitos na América Latina: batalhas tanto pela terra como pelo corpo da mulher. Como ocupantes da base da hierarquia social na região, ser indígena e ser mulher interagem de tal maneira que não só o fato de ser do sexo feminino atua como uma barreira para os serviços, educação e justiça, mas pertencer a um grupo étnico marginalizado agrava obstáculos através de uma rede de determinada circunstâncias. Além disso, os altos índices de violência contra mulheres indígenas são vagamente criminalizados.
Na Guatemala, mulheres da etnia Maya Q’eqchi’ recentemente levaram seus depoimentos para a Suprema Corte como parte do caso Sepur Zarco, para demandar justiça por crimes cometidos durante o conflito interno armado de 1960 a 1996. Os crimes incluem violência sexual, escravidão sexual e doméstica, desaparecimentos forçados e assassinatos atribuídos a seis destacamentos militares, que se estabeleceram na região de Sepur Zarco com a finalidade de exterminar os habitantes locais. Durante o conflito de 36 anos na Guatemala, a violência sexual foi utilizada de forma generalizada e sistemática como parte da contra-insurgência do Estado, mas nenhum oficial jamais enfrentou acusações de violência sexual. Mulheres eram submetidas a condições desumanas, repetidamente estupradas e forçadas a cozinhar e limpar para os soldados.
Depois de todas essas décadas de impunidade, no dia 27 de fevereiro, dois ex-militares guatemaltecos foram considerados culpados por crimes contra a humanidade. Pela primeira vez uma corte nacional ouviu acusações de abuso sexual durante a guerra e isso foi surpreendente por muitas razões. Em primeiro lugar, pelo veredicto histórico, – ainda que para apenas dois dos autores – foi crucial para o avanço de uma justiça transicional em muitos países da América Latina, já que o caso tratou escravidão doméstica e sexual como crimes de guerra. Segundo, o julgamento definiu um padrão de prova com base no depoimento de sobreviventes das populações que tipicamente são silenciadas e/ou ignoradas. Terceiro e muito importante, essa decisão oferece esperança para uma mudança de mentalidade de derrota que as mulheres desenvolveram por causa da dificuldade de acessar a justiça e acabar com a impunidade.
É difícil desmantelar a cultura da impunidade que cerca a violência sexual. Ainda assim, enquanto o pronunciamento de “nós acreditamos em vocês” depois de 30 anos no julgamento de Sepur Zarco precisa ser lembrado, ele também ressalta problemas mais profundos que devem ser abordados de forma sistemática. A aparente facilidade com que as violações são cometidas, especialmente contra mulheres indígenas e afrodescendentes, é baseada em profundas desigualdades sociais e estruturais. Para entender a profundidade real do problema, o conceito de “aditivo” ou “múltiplas desvantagens” pode servir como bússula. Estamos incorporados em um bordado social composto por papéis sociais e estruturas que interagem na nossa realidade pessoal. Enquanto nem todas as pessoas que se identificam com uma categoria social – seja ela “mulher”, “indígena” ou “campesina” – tem as mesmas experiências, o conceito de desvantagens aditivas fica na interseção entre estas identidades e adequadamente explica as desvantagens experimentadas por aquelas que ficam nos cruzamentos.
Vemos os tentáculos de multiplas desvantagens no nexo entre etnia e gênero. Atos de violência infligidos às mulheres indígenas são de muitos preconceitos. Victoria Tubin Sotz, mulher de um Q’eqchi “envolvida na mobilização de diversos mecanismos para obter justiça para as mulheres de Sepur Zarco”, articulou a importância de reconhecermos o peso do racismo quando falamos de violência contra mulheres indígenas. Ela destaca que, não só esses atos são ancorados em um esquema patriarcal, mas acrescentou que isso é “aquele racismo, que tem a ambição de aniquilar”: o desprezo histórico aos povos indígenas. Mark Lattimer, diretor-executivo do Minority Rights Group International, expressou pensamentos similares em 2011 no relatório State of the Worl’s Minoritie and Indigenous Peoples: “Mulheres de minorias e comunidades indígenas são deliberadamente alvo de estupro e outras formas de violência sexual, tortura e mortes por causa da sua etnia, religião e identidade indígena”.
O maior perigo reside na amnésia coletiva que esquece os valores dessas mulheres rurais e que silencia os atos contra elas.
Isso dito, violência contra mulheres indígenas não se manifesta apenas em instâncias particulares de agressão. Em uma escala estrutural e institucional, a desvantagem aditiva pode problematizar inclusão social e aprofundar as distâncias entre metas de desenvolvimento. Em toda a América Latina, os cerca de 50 milhões de indígenas usualmente ocupam os locais menos desenvolvidos sócio-economicamente e vivem em áreas remotas, com 2 vezes mais chances de serem pobres se comparados aos demais latino-americanos. Na Bolívia, onde 60 por cento da população se identifica como indígena ou afrodescendente, as mulheres indígenas sofrem um risco ainda maior de serem excluídas. Lá, uma indígena rural tem cinco vezes menos chance de completar a escola secundária do que um homem não indígena.
Mulheres indígenas são mulheres em uma sociedade predominantemente patriarcal, são de uma etnia minoritária em uma sociedade que admira os valores do ocidente e são pobres e rurais em uma sociedade onde a riqueza é uma marca social importante. Isto é, elas têm, de fato, uma desvantagem tripla.
Na tentativa de escapar da falta de oportunidades acadêmicas e econômicas em casa, juntamente com o alto risco de violência baseada em gênero a qual estão submetidas nos assentamentos rurais, mulheres indígenas muitas vezes deixam os territórios de seus ancestrais por centros urbanos, onde elas enfrentam novas dificuldades. Enquanto lá elas tem maior acesso à educação e água potável, a discriminação é maior e os trabalhos que conseguem são servis. Em muitas cidades latino-americanas, mulheres indígenas são uma grande proporção das serventes domésticas com poucos direitos a proteção trabalhista. Durante um encontro em que participei em La Esperanza, em Honduras, organizado pela CICESCT (Comisión Interinstitucional contra la Explotación Sexual Comercial y la Trata de Personas) e pela Casa Alianza sobre os direitos das mulheres, o porta-voz da CICESCT contou que, em sua maioria, as serventes domésticas não têm seguro social e são verbalmente – e em muitos casos fisicamente – agredidas. Na verdade, “mucho pegue y poca paga” (muita surra e pouco pagamento) parece ser o melhor resultado a se esperar quando se vai para Tegucigalpa e San Pedro para trabalhar nas grandes mansões. Mulheres e meninas indígenas são forçadas a tirarem seus vestidos típicos, mudarem seus padrões de linguagem e são chamadas de “Maria” como um apelido comum, destruindo qualquer resquício de identidade étnica e valor humano. Mas as que ganham salários são vistas como as sortudas. Infelizmente, em muitos casos, não ser paga por trabalhar 18 horas por dia é o destino de muitas dessas mulheres que acabam sendo forçadas à servidão.
Com estas camadas desfavorecidas, gênero e etnia são agendas tão políticas como qualquer outra. Muito já foi alcançado na última década na América Latina para enfrentar a epidemia de violência contra a mulher, com os esforços de união de movimentos populares, ONGs locais e organizações internacionais. No entanto, é imperativo reconhecer a pluralidade de vozes no tema de “direitos das mulheres”, e que violência contra as mulheres tem uma dimensão particular ligada a etnia e raça. Entre esses há ainda mais pluralidade: mulheres indígenas não são um grupo homogêneo, mas tem uma vasta quantidade de situações, necessidades e demandas.
Também é crucial reconhecer e proteger o papel fundamental da mulher indígena na promoção e proteção dos direitos humanos. Mulheres na América Latina estão lutando pelos seus direitos e pela participação na tomada de decisão; comunidades estão indo contra projetos que são enquadrados como “desenvolvimento” mas de fato promovem deslocamento forçado e a asfixia antidemocrática de tradições. Muitas mulheres indígenas são militantes ativas de direitos humanos de todos os indivíduos e do seus povos como coletivo.
No entanto, esses esforços ainda são atacados. Em um prelúdio sombrio para o Dia Internacional da Mulher, a líder indígena e ativista ambiental hondurenha Berta Cáceres foi assassinada em sua casa no dia 3 de março de 2016. Como uma mulher Lenca, ela estava profundamente comprometida com a proteção dos direitos das comunidades Lenca e de seus recursos naturais através de mobilização de base dos trabalhadores, mulheres, povos indígenas e campesinos, razão pela qual criou o Conselho dos Povos Indígenas de Honduras (COPINH). Eu tive a oportunidade de trabalhar com seus colegas de COPINH através de programas de rádio semanais na plataforma de rádio da comunidade indígena: La Voz Morazánica. Após a conquista do Goldman Environmental Award, em 2015, Cáceres prometeu continuar defendendo os direitos da natureza, das mulheres e das comunidades indígenas, e dedicou o prêmio “a todos os rebeldes mundo a fora”.
É este espírito de rebeldia que caracteriza aqueles que lutam pelo empoderamento das mulheres, pelo empoderamento das comunidades indígenas, e, mais amplamente, pela justiça. No entanto, aqueles que lideram esses movimentos são castigados sistematicamente. Berta Cáceres é mais uma vítima do paradoxo que assola as vozes do inaudito: falam de vida e ganham uma sentença de morte. Ironicamente, em Honduras, são os que se manifestaram contra injustiças como a taxa chocante de feminicídio – que cresceu 260% na última década com a morte de uma mulher a cada 16 horas em 2015 – e a taxa desencorajadora de impunidade – mais de 96% – que tem sido alvo.
Com a falta de prestação de contas, a aceitação social da violência, especificamente contra a mulher, foi normalizada. As mulheres em Honduras tem lutado contra a impunidade através de coletivos como Foro de Mujeres por La Vida, Las Hormigas e Visitación Padilla, cujos membros são conhecidas como “Chonas” (mulheres com ideais feministas). A coordenadora deste último, Gladys Lanza, foi condenada por difamação no ano passado por defender uma mulher que acusou um funcionário do governo hondurenho por assédio sexual. Nenhum governo pode esperar uma melhora em matéria de direitos humanos quando usa o poder de duas instituições para perseguir defensores de direitos. Na verdade, o sistema judicial é um dos maiores obstáculos para a implementação de ferramentas internacionais para a proteção da mulher, que Honduras não ratificou. O Estado e suas instituições, portanto, são altamente implicados.
Em paralelo ao ativismo pelos direitos das mulheres, a crescente visibilidade de organizações dos povos indígenas tem sido importante para governos e agências internacionais prestarem mais atenção às suas demandas. No entanto, é importante lembrar que a mulher indígena, especialmente, continua invisível na sociedade latino-americana. Analisar a situação da mulher indígena requer intersecção entre gênero e perspectivas indígenas, que envolve considerar o conceito de bem-estar, a situação da mulher indígena no seio da comunidade, suas prioridades e necessidades, incluindo acesso e controle de territórios. Apesar das leis condenarem as mulheres, e a sociedade relegar a mulher indígena para uma nota de rodapé periférica na legislatura e na sua prática, a legitimidade cobre os seus esforços por visibilidade e justiça, sua coragem, sua resistência.
As barreiras estruturais que impedem as mulheres e os povos indígenas de acessar qualquer grau de mobilidade social só podem acabar se as mulheres corajosas, que tem exaustivamente lutado por reparação, forem vistas como atores políticos valiosos. E chegou a hora da América Latina enfrentar o desafio tríplice com a resistência de seus habitantes mais vulneráveis.