Por Isi de Paula
Quando disse ao taxista que me dirigia ao Estelita, ele foi cuidadoso. “Vai sozinha? Você sabe que aquela área é meio esquisita, não é?”, advertiu. “Esquisito” é o termo que usamos na linguagem recifense para nos referirmos a locais ermos, onde a arquitetura não favorece a circulação de pessoas e, com a falta de movimento humano, o que se experiencia é uma sensação de insegurança. O termo faz parte da vida diária de todo morador da cidade cujas áreas, para nós, podem muito bem ser divididas entre duas categorias: “seguras” e “inseguras”. Ou seja, “movimentadas” e “esquisitas”. É desta categoria que faz parte o local para onde direcionei aquele taxista. Mas o tranquilizei: “Hoje vai ter Ocupe Estelita, vai estar movimentado”. Era o último sábado, dia 21, e o evento marcava o aniversário de dois anos desde a primeira ocupação que consolidou um dos movimentos sociais mais relevantes já criados no Recife.
A esta altura do imbróglio, é difícil escrever um texto que dê conta de todas as nuances que o permeiam. Vale começar dizendo que não se trata de uma área qualquer: o Cais José Estelita abriga parte importante da memória do Recife em seu terreno de mais de 100 mil metros quadrados, onde, no século passado, funcionavam armazéns de açúcar e a Estrada de Ferro do Recife, segunda ferrovia do Brasil. Vale também salientar o quanto a localização é privilegiada, no centro antigo da cidade e com bela vista para a bacia do Pina. Outrora de propriedade da União, em 2008 o terreno foi adquirido, por meio de um leilão fraudulento, por um consórcio formado por quatro grandes construtoras da cidade, sendo a principal a Moura Dubeux. O Consórcio Novo Recife, como foi batizado, pretendia demolir as históricas construções do cais para erguer no lugar doze torres de até 30 andares. O projeto de luxo seria levado adiante sem que as construtoras tivessem realizado estudos de impacto obrigatórios para a área, e sem que a população da cidade tivesse sido consultada.
Apesar das várias irregularidades, na madrugada do dia 21 de maio de 2014 os galpões do cais foram tomados de assalto por retroescavadeiras. A construção iniciaria naquele momento, não fosse o acaso de dois integrantes do Ocupe Estelita terem passado por ali e, imediatamente divulgando o caso nas redes sociais, conseguido mobilizar um grupo de manifestantes que montou acampamento no local. Ali nascia o movimento que tem conseguido, desde então, evitar que imensos arranhacéus roubem da cidade uma de suas melhores paisagens. Não tem sido uma tarefa fácil, uma vez que as construtoras, doadoras nas campanhas eleitorais, têm contado com o apoio de um governo municipal que não hesita em se utilizar de subterfúgios para evitar a participação da sociedade civil nas decisões sobre o projeto, e assim facilitar sua execução. Mas, ao menos por enquanto, o consórcio está impedido de derrubar qualquer tijolo do cais até que se resolvam os cinco processos aos quais responde na Justiça. A sombra do Novo Recife permanece ali, contudo, marcando território na presença de seguranças que vigiam o local 24 horas por dia.

Em outubro de 2015, após a Polícia Federal afirmar que o leilão do terreno foi ilegal, um juiz do TRF 5º proibiu a Prefeitura de continuar o processo de aprovação do Projeto Novo Recife. A população foi para a rua, mas a decisão foi cassada por um desembargador do mesmo tribunal. (Foto: Marcelo Soares)
Com o cais fechado e vigiado, o Ocupe Estelita realizou o evento comemorativo na praça Abelardo Rijo, logo ao lado do cais e que, apesar de ser espaço público, vive permanentemente vazia, esquisita. Observei enquanto chegavam cada vez mais pessoas, de todas as idades e classes sociais, e começaram a ocupar aqueles arredores que normalmente só testemunham algum movimento quando se pratica ali tráfico de drogas, prostituição, violência. Vi adolescentes, celulares na mão, irem fazer selfies na ponte e em frente aos armazéns. Aos poucos foram chegando também trabalhadores, vendedores de cerveja e cachaça que sentavam com suas caixas de isopor ao lado de barraquinhas meio gourmet, onde jovens de classe média vendiam cupcakes e petiscos veganos. Ao ruído das conversas se misturou o som de música que alguém lembrou de tocar, e até mesmo moradores de rua se sentiram à vontade para se aproximar, sentar à sombra das árvores e participar daquele momento de comunhão. Eu testemunhava a transformação de uma área “esquisita” em uma área “movimentada”, uma transformação não só física, mas psicológica: estando em grupo, a cidade já não nos assustava, e já não nos assustavam pessoas que poderiam parecer suspeitas caso qualquer um de nós que participávamos do ato estivéssemos ali sozinhos.
Esse é o tipo de experiência que passa longe da compreensão dos especuladores imobiliários, que pretendem instaurar na cidade a arquitetura do medo: em vez de combater a segregação social, tornam-na ainda maior ao construir luxuosos fortes para se proteger do desconforto que ela causa. Em 2008, o projeto original do Novo Recife foi protocolado na Prefeitura apenas um mês antes de entrar em vigência o atual Plano Diretor da cidade, que prevê normas de construção mais rigorosas que o anterior. Isso permitiu que fossem ignoradas, na época, diversas falhas arquitetônicas e urbanísticas que o consórcio vem tentando contornar após a grande pressão popular liderada pelo movimento Ocupe Estelita. Por exemplo, não foi prevista no projeto original a inclusão de habitações populares para realocar as comunidades pobres que seriam expulsas da área para que ela recebesse o público de classe alta. Além disso, a altura das torres não só destoa drasticamente da paisagem histórica do centro da cidade como também lhe rouba a ventilação que vem do Rio Capibaribe. Há ainda o problema da grande quantidade de carros que o empreendimento atrairiam para o tráfego local, já bastante problemático.
São provas de que, na arquitetura do medo, o que se prioriza é o imóvel e o automóvel em detrimento do cidadão. Educar a população da cidade acerca desse fenômeno, e mobilizála contra ele, tem sido o grande mérito do Ocupe Estelita, tanto quanto as conquistas judiciais. “Um marco em nosso movimento foi o momento pós ocupação de maio de 2015, quando conseguimos uma grande mobilização popular. Fizemos uma série de atos que terminaram em ocupações em frente ao shopping RioMar, em frente à casa do prefeito Geraldo Júlio e na sede da Moura Dubeux”, relata Fernanda Dantas, uma das integrantes do Ocupe. Segundo ela, durante esses protestos o número de participantes chegou a cerca 5 mil. “Também conseguimos uma grande mobilização através de nossas redes sociais. Mas o principal espaço de diálogo ainda são nossas assembleias abertas, onde discutimos e tomamos decisões em grupo”, explica.
Nesses dois anos de trajetória, contando com crescente apoio popular, o próprio movimento transcendeu. O que começou como mais um movimento de ocupação, no embalo dos #Ocupes e #Occupies ocorrendo em todo o Brasil e no mundo, passou a ser ponto de convergência para toda discussão urbanística do Recife, e mesmo de além da capital. “Fizemos, por exemplo, o Ocupe Campo Cidade, em parceria com o MTST e povo indígena “Xukuru”, lembra Fernanda Dantas. “Isso nos mostrou que, tanto no campo quanto na cidade, estamos todos na mesma luta por espaço, porque o capital imobiliário quer chegar a esses lugares também”. Já a comemoração dos dois anos de ocupação contou com a presença do coletivo Marcha das Vadias, que aproveitou o evento para fazer pintura de cartazes e camisetas, de um grupo de direitos LGBT que montou uma tenda de debates e palestras, entre outros movimentos. “O que nos une o fato de estarmos lutando por direitos. Qualquer que seja o movimento, o que buscamos são condições de vida melhores, principalmente para as mulheres”, opina Patrícia Naia, integrante do Marcha.
Com o cair da noite, a praça foi ficando ainda mais movimentada. Ocupantes chegavam de carro, ônibus e bicicleta, aumentando o fluxo humano entre pistas, estacionamentos e pontos de parada. Com o fim das atividades programadas para o dia, crescia o clima de festa e se fazia a alegria dos ocupantes e dos vendedores, que também iam se tornando cada vez mais numerosos. Era minha hora de partir e, nesse momento, já me sentia encorajada a voltar para casa usando transporte público. Não sem a constante sensação de insegurança que já está impregnada no espírito de qualquer pessoa que tenha vivido por algum tempo o Recife e seus esquisitos. Mas com a esperança que o movimento Ocupe Estelita e seus dois anos de luta são capazes de inspirar, de que um dia a cidade será para todos.